Gilmar
de Carvalho resgata o trabalho da rede da almofada de dona zefinha,
artesã de potengi. Com a almofada, bilros, espinhos e novelos de linha,
ela demora mais de dois meses para tecer uma peça.
De
onde veio essa idéia de fundir tradição européia com herança indígena? A
renda de almofada é herança dos colonizadores. Os portugueses buscaram
inspiração no Oriente (e os espanhóis em Flandres). Foi trazida pelos
jesuítas para os aldeamentos indígenas cearenses no século XVIII.
Crianças nativas se exercitavam no ponto no ar e lançavam as bases de
uma tradição. A figura da rendeira foi construída como referência da
destreza de nossas artesãs e ganhou a dimensão de um símbolo. A voz do
povo cantou a quadra de autor anônimo: “Tu me ensinas a fazer renda/que
eu te ensino a namorar”.
A “ini”, a rede de dormir
da tradição indígena, feita com fios de algodão nativo, migrou dos
teares manuais e das travessas Tremembé para a almofada das rendeiras.
Falar de cultura autóctone, pura ou genuína é de quem não sabe o que
diz. Não existem fronteiras para os saberes, fazeres, folguedos e
narrativas.
Dona Zefinha vive no
longínquo e esquecido Potengi, da rua dos ferreiros, do reisado do
Sassaré, de um dos maiores rebanhos de gado do Cariri e da arte em
flandres de Mestre Françui.
Com a almofada de 90
centímetros de largura, 270 pares de bilros de macaúba, uma floresta de
espinhos de mandacaru, 16 novelos de linha Anne e quatro de Cléa, dona
Zefinha tece a rede durante mais de dois meses.
O resultado é uma teia de
culturas e trama tão delicada que é uma violência se deitar na rede,
apesar do carinho com o qual ela acolhe nossos corpos.
Herança
Dona Zefinha diz que a
mãe, dona Helena, a ensinou e aprendera, por sua vez, com dona Nanu, que
vivia em Santana do Cariri. Curioso que a tradição não se tenha
desenvolvido na cidade dos fósseis e dona Zefinha talvez seja hoje a
única herdeira do ofício.
Os pares de bilros dançam
nas mãos de dona Zefinha. Ela jura que se acostumou com o barulho e é
capaz de não ouvi-lo, tão concentrada está na tarefa. Se ela se distrair
um pouco, pode errar, e, se isso acontecer, a alternativa é desmanchar,
como uma Penélope da Odisséia de Homero, para refazer o trabalho.
Se ela se acostumou com o
matraquear dos bilros, quem a visita não pode dizer o mesmo. Não se
sabe se o mais importante é o domínio que ela tem da almofada de chita,
recheada de palha de arroz, ou se o jogo de suas mãos.
O papelão impressiona
pelo pinicado que vai servir de guia para a renda/rede. É como se fosse
um programa antigo de computador, com os furos que deverão ser
obedecidos para que a rede comece a ganhar forma. Os punhos, as
mamucabas, o corpo da rede, tudo é feito numa peça única. As varandas
são aplicadas depois. Dona Zefinha preferiria fossem de macramê, com a
trama na parede, como teia de aranha, mas tem de fazê-las de crochê para
ganhar tempo.
A rede não tem emendas,
apesar de ser bem mais larga que a almofada. A peça que está sendo feita
é enrolada, vai ganhando um complemento e o resultado surpreende pelo
inusitado desse capricho artesanal. Dona Zefinha não pode se dar o luxo
de ter dessas redes para pronta-entrega. Geralmente aceita encomendas.
São poucos os que sabem desse tesouro do qual a habilidade cearense é
capaz. Menos ainda têm dinheiro para adquirir uma dessas redes.
Dona Zefinha passa a arte
para as seis filhas e essas transmitem a herança para alguns dos 22
netos dela. A permanência da rede de renda está assegurada, para
tranqüilidade dos apocalípticos.
Gilmar de CarvalhoColaborador