Livro resgata jornadas de
sobreviventes da ditadura, intelectuais, artistas e líderes de um
projeto nacional democrático, enquanto os “vencedores” de ontem vivem
nos subúrbios da história
por Xandra Stefanel
publicado
23/12/2014 12:13,
última modificação
23/12/2014 12:21
O momento não poderia ser mais propício para a leitura de Os Vencedores – A Volta por Cima da Geração Esmagada pela Ditadura de 1964 (Geração
Editorial, 856 págs.), do jornalista Ayrton Centeno. Enquanto a direita
saudosa dos anos de chumbo sai às ruas com seus gatos pingados e
barulhentos para pedir intervenção militar, a imensa reportagem de
Centeno chega às livrarias para relembrar uma história sombria que calou
por muitos anos militantes, músicos, cineastas, atores, jornalistas,
escritores e artistas em geral.
O que o autor pretende é trazer à tona uma realidade bastante evidente mas que, segundo ele, até então ninguém havia abordado: “O fato de que os vencedores de 1964 hoje estavam esquecidos enquanto os derrotados de então eram, décadas depois, são os reais vitoriosos. O ponto de partida foi uma entrevista com a então ministra da Casa Civil e pré-candidata à Presidência, Dilma Rousseff, que eu havia feito em 2010”, afirma Ayrton Centeno.
O que o autor pretende é trazer à tona uma realidade bastante evidente mas que, segundo ele, até então ninguém havia abordado: “O fato de que os vencedores de 1964 hoje estavam esquecidos enquanto os derrotados de então eram, décadas depois, são os reais vitoriosos. O ponto de partida foi uma entrevista com a então ministra da Casa Civil e pré-candidata à Presidência, Dilma Rousseff, que eu havia feito em 2010”, afirma Ayrton Centeno.
Para contar esta história, durante três anos Ayrton
fez muitas entrevistas. Dilma, Tarso Genro, José Genoíno, Aloysio Nunes
Ferreira, José Dirceu, Frei Betto, Gilberto Gil, Marília Pêra, José de
Abreu, José Celso Martinez e Ignácio de Loyola Brandão são alguns dos
que receberam o jornalista para longas conversas. A primeira delas foi
com a presidenta reeleita, sobre quem ele narra toda a história, desde a
infância, em Belo Horizonte, passando pela adolescência, a entrada na
clandestinidade, a prisão, a tortura, a vitória contra o câncer e a
conquista da presidência do maior país da América do Sul.
Segundo Centeno, o critério de escolha dos
entrevistados tem uma lógica e um lado bem definidos. “Pode-se dizer que
o material existente, os depoimentos a serem concedidos, as histórias a
serem contadas dariam material para uma alentada coleção da
resistência. Foi necessário fazer escolhas. A primeira delas foi a de
ouvir apenas os resistentes. O livro, portanto, tem lado. O que não
significa que pretenda subverter a verdade factual. Quanto aos
entrevistados potenciais, houve alguns que, procurados, preferiram não
se manifestar, caso de Chico Buarque, Caetano Veloso, Fernando Gabeira,
por exemplo. A outros não foi possível ouvir por diferentes razões”,
afirma.
-
Marcello Casal/ABr

- “É possível afirmar que
os vencidos de ontem, por caminhos distintos, coletivos ou individuais,
derrotaram a derrota que lhes foi imposta na luta armada ou desarmada
contra a ditadura, enquanto os vitoriosos de outrora habitam os
subúrbios da memória nacional”
Devidos lugares
Os fatos são incontestáveis: “Nos últimos 20 anos, o
Brasil foi governado por um professor perseguido que perdeu sua cátedra
na Universidade de São Paulo e se autoexilou; um torneiro mecânico
preso, condenado duas vezes e removido da direção de seu sindicato; e
uma ex-guerrilheira, presa e torturada. Os três foram privados de seus
direitos políticos”, reforça. E como estão aqueles que perseguiram,
torturaram e mataram nos porões da ditadura?
O delegado Davi dos Santos Araújo, conhecido na época
da ditadura como Capitão Lisboa, talvez tenha a resposta. Supostamente
arrependido, parece ter entendido a sucessão de desgraças que viveu
(infartos, cânceres, cegueira e acidentes) como castigo divino pelas
atrocidades que cometeu. “Se eu soubesse que o Brasil resultaria nisso,
não teria ido para lá (DOI-Codi). Hoje nossos adversários são
excelências e nós não somos nada.”
“Na disputa pela memória, os perdedores venceram”,
escreve Ayrton Centeno, na abertura do livro, ao observar que velhas
palavras impostas pelo imaginário do autoritarismo foram
ressignificadas. “Revolução, terrorismo, subversão deram lugar a golpe,
tortura, resistência. Repisada a sério anos a fio, a expressão
‘Revolução Redentora’ é lida hoje apenas pelo viés da galhofa. Mesmo a
imprensa que quase sempre perfilou-se com os militares, agora refere-se a
1964 como golpe, sem nenhuma cerimônia.”
Ao contrário dos algozes que têm de esconder sua história vergonhosa, os personagens de Os Vencedores,
por mais difíceis e dolorosas que tenham sido suas experiências, podem
se orgulhar de terem lutado por um país mais justo e democrático. Apesar
de não serem histórias inéditas, são impactantes e extraordinárias.
Juntas em uma mesma obra, têm peso inquestionável.
“São, no legítimo sentido do termo, trajetórias
extraordem. Já era assim nos anos 1960. Mas são muito mais
impressionantes agora quando as utopias são, como nunca, questionadas e o
pensamento dominante está muito mais focado na realização individual,
no arrivismo, no vencer na vida a qualquer preço, no consumo conspícuo,
no próprio umbigo”, opina o jornalista.
Questionado sobre a entrevista que mais o emocionou,
Ayrton Centeno destaca a de José Genoino: filho de sertanejos muito
pobres, trabalhou na roça desde criança e calçou sapatos pela primeira
vez na adolescência. Virou liderança estudantil no Ceará, contraiu
leshmaniose e 20 malárias na guerrilha do Araguaia, foi preso, torturado
e, por um triz, escapou de ser executado.
“Cumpriu pena longa na ditadura. Reconstruiu sua
vida, foi vendedor de tintura de cabelos, depois professor de cursinho e
retornou à militância no PT, após transitar pelo PCdoB e o clandestino
Partido Revolucionário Comunista (PRC). Casou-se com uma companheira de
trajetória revolucionária, teve filhos, elegeu-se deputado federal e
liderança nacional do partido. Foi constituinte em 1988 e se tornou uma
das figuras notáveis do Congresso. Na presidência do PT, foi fulminado
pelo julgamento atípico do chamado mensalão e hoje luta para defender
sua história.”
Os Vencedores – A Volta por Cima da Geração Esmagada pela Ditadura de 1964 faz
um retrato de uma geração nascida nos anos 1940 e que era muito jovem
nos anos 1960. A narrativa acompanha a travessia desses militantes,
estudantes, músicos, escritores, atores, cineastas e guerrilheiros em
sua derrocada até sua superação, quando se tornam referências de luta
pela democracia.
Trata-se de uma obra útil até mesmo (ou ainda mais)
para esses que hoje esperneiam pela volta dos militares. “Costumo dizer
que a direita que está nas ruas em 2014 se faz direita menos por sua
atividade intelectiva do que por sua operosidade intestinal. Mas,
cuidado: todo mundo sabe perfeitamente que, adicionando agressividade e
violência a este coquetel, o resultado é o fascismo. Acho que o livro
será útil mesmo para quem grita pela volta dos militares. Basta
encará-lo com espírito desarmado, sem milhares de certezas e nenhuma
dúvida. É que Os Vencedores, entre outras tarefas, também cumpre a
função de descrever algumas das situações e práticas que tornaram a
ditadura uma experiência tão nefasta. Para nunca mais ser repetida”,
completa o autor.
Imagens usadas na montagem de
abertura: Arquivo Pessoal (Gilberto Gil); Rolando de Freitas/AE (José
Celso); Juca Martins/Olhar Imagem (Lula); Reprodução (Dilma); AE (José
Dirceu); Arquivo Pessoal (Genoino)
Fonte: redebrasilatual